A Palavra de Deus e o incansável esforço da comunidade para entendê-la como tal.
A Palavra de Deus sem dúvida é um dom gratuito para as pessoas. Se não for verdade, todo tempo gasto sobre ela não terá a menor graça!

O mês de setembro - vale a pena ser lembrado com muito carinho, é tempo precioso para ler e contemplar a Palavra de Deus. A palavra de Deus é a lâmpada para nossos pés e luz para o nosso caminho (Sl 119,105). Graças a Deus, o numero daqueles que leem, entendem e ensinam a Sagrada Escritura cresce cada vez mais. Por isso, ela é também cada vez mais venerada, refletida, discutida e estudada. Ainda assim, vale a pena refazer a pergunta que o Filipe fez ao funcionário etíope “Você entende o que está lendo?” (At 8,30). Hoje gostaria de refletir sobre o processo da leitura e a interpretação da Palavra de Deus ao longo dos tempos. A Palavra que toma forma da letra
A Palavra de Deus, sem dúvida é um dom gratuito. Se não for verdade, todo tempo gasto sobre ela não terá a menor graça. A tradição nos conta que Deus abonou tal palavra para a humanidade, e as pessoas humanas repassaram-na primeiro oralmente e depois a escreveram. Antes de ser escrita, foi dada uma comunidade, e oralmente repassada de uma geração a outra. Depois, um grupo de redatores a escreveram  nos papiros (material precário), e mais tarde outros nos pergaminhos (material mais durável). Ou seja, a Sagrada Escritura nasceu em um contexto, foi escrita em outro. O Antigo Testamento, com certeza, é um fruto de um trabalho que durou mais ou menos um milênio e o Novo testamento, alguns séculos. Sem duvida, quando falamos da Sagrada Escritura, estamos falando de uma obra que demorou muito tempo para ser concretizada, com seus pormenores.

Interpretação judaica
Os judeus, herdeiros destas sagradas escrituras, desenvolveram métodos próprios de interpretá-las. Grandes rabinos e estudiosos contribuíram para este fim ao longo dos últimos milênios. Ora pelas histórias que repetiam, ora pelos números citados, sabiam o que o escritor queria dizer, algo que estava escondido, e devia ser descoberto. Sabiam muito bem, o que era uma metáfora, um dito popular, uma alegoria, uma poesia. Havia anedotas, para enriquecer o ensino das gerações posteriores e as leis (de higiene) para salvaguardar a vida das doenças sem cura. Mais ainda, nem tudo era tão fácil de entender, os rabinos algumas vezes apontavam opiniões opostas, e tinham a liberdade de fazê-lo, sem criar nenhum escândalo.

Os primeiros cristãos:
A preocupação dos primeiros cristãos não era debruçar sobre um livro, mas seguir a pessoa de Jesus na luz das sagradas escrituras para fomentar a vivência cristã, encarar as perseguições, e superar uns conflitos entre as lideranças e nas comunidades. Nesse trabalho Paulo foi um grande mestre. A religiosidade popular já tinha levado a mensagem de Jesus aos porões da vida humana. Nesse contexto foram escritos os evangelhos e as cartas para a formação nas comunidades. E para as lideranças, era o momento para firmar a fé em formulas sólidas. Os desafios mais sérios eram de cunho teológico. Progressivamente se constituiu uma teologia cristológica, trinitária e pneumatológica.

Os Padres da igreja:
Os padres da igreja sempre deram muita atenção à divulgação e interpretação da Sagrada Escritura. Usaram, no inicio, as formas descritivas da cultura judaica como métodos alegóricos, literários, históricos e filológicos. Os grandes nomes como Orígenes, Eusébio da Cesaréia, Gregório de Nissa, Basílio, João Crisóstomo, Jerônimo e muitos outros contribuíram para este fim.
No segundo milênio surgiram novos métodos de interpretação que revolucionaram o estudo bíblico, e ajudaram ver a palavra de Deus de vários ângulos, e entender melhor este tesouro. São numerosos os nomes dos estudiosos, apaixonados pela palavra de Deus, QUE deixaram a sua colaboração neste campo. Mais ainda, se a leitura da Palavra de Deus era negada ao povo por motivos variados, acabou sendo traduzida para muitas línguas, no fim do milênio.
Vaticano II e Dei Verbum:
O Concílio do Vaticano II brindou aos fiéis um dos importantes documentos no campo da Sagrada Escritura, a constituição dogmatica Dei Verbum, ou seja, a Revelação Divina. Foi um dos documentos mais discutidos, cujo primeiro esboço foi descartado completamente pelo Papa João XXIII. A Dei Verbum, declarou insistentemente que Deus se revelou dentro da historia humana, e dela passou fazer parte. Não há outro lugar, ou outra maneira de Deus se revelar, senão adentro da historia humana. Até agora, se era o latim que predominava, daqui pra frente, a palavra de Deus tomara outros rumos. Pelo incentivo recebido, e por causa da tradução nas línguas vernáculas a leitura bíblica se tornou acessível a todos.
Os métodos modernos:
Hoje muitos cristãos utilizam métodos novos que ajudam a interpretar e estudar a Bíblia, uns mais populares, outros mais científicos. O método da Critica textual, literária e histórica, com seus dois ramos mais usados, ou seja, de caminho diacrônico e caminho sincrônico tem ajudado a entender o que o texto bíblico diz e o sentido que tem para nós hoje.
No documento de Dei Verbum, a igreja aceitou tal abordagem como útil e necessária. Mais ainda, surgiram estudos bíblicos no campo das ciências humanas, ou seja, abordagens variadas: psicanalítica, feminista e materialista da bíblia. Todo o esforço dedicado para compreender o sentido entendido pelo autor bíblico (tanto quanto possível), porque, naquele texto, Deus revelou algo para a humanidade.
Leitura fundamentalista:
Mas há também aqueles que leem a bíblia ao pé da letra, num jeito fundamentalista, sem deixar espaço para qualquer releitura ou interpretação. Este grupo absolutista a letra, rejeitando qualquer interpretação, temem que o texto possa perder o seu sentido original. Não aceitam novos métodos, desconfiam e criticaram qualquer ajuda ou o estudo neste sentido. Em lugar de ajudarem a entender a vida, complicam-na. Nos casos extremos, os grupos tornaram-se sectários e até levaram seus seguidores para a morte ou suicídio.
A história da palavra de Deus chama atenção para a necessidade do estudo sério e perseverante. O leitor, embora inspirado, deve gastar tempo com ela, lendo, relendo, analisando, rezando para colocá-la na experiência da vida. Sua finalidade é e sempre será nos ajudar seguir Jesus Cristo. Para isso vale a pena usar toda ajuda que está ao seu alcance. Um curso bíblico de qualidade oferecido na proximidade, e uns livros podem ajudar nesta tarefa. Para finalizar, tome cuidado para que, com todo o esforço de entender a palavra de Deus, não perca o próprio Deus de vista, aquele que está presente na pessoa humana, na criação nas varias situações do cotidiano!

Pe. Ronaldo Lobo, SVD