Festa Da Sagrada Família (27.12.15)

Lucas 2, 41-52

            Na Igreja Católica, hoje é celebrada a festa da Sagrada Família. Portanto, o trecho de Lucas põe em relevo os três membros da família de Nazaré, - mas tem como o seu tema principal, um ensinamento sobre quem é Jesus, a sua relação ao Pai e à sua família humana. A história começa enfatizando a identidade da família humana de Jesus como judeus piedosos. Os regulamentos sobre as peregrinações ao Templo de Jerusalém, para a festa de páscoa, se encontram em Ex 23,17;34.23; Lev 23,4-14. Como consequencia, entendemos que o ambiente em que Jesus cresceu - e em que descobriu a sua vocação e missão - é aquele dos “pobres de Javé”, os devotos que esperavam a libertação de Israel, através da vinda do Messias davídico prometido. Esta viagem prefigura a grande viagem de Jesus à Jerusalém em Lc 9,51 - 19,27, que ela fará com os seus discípulos, e onde ele revelará por palavras e ações o seu relacionamento com o Pai - prefigurado aqui no versículo 49. O texto salienta certas atitudes de Jesus. É bom prestar bem atenção aos verbos.   Lucas diz que Jesus estava no templo entre os doutores :“escutando e fazendo perguntas.” ( v. 46).   A atitude de Jesus é a de um aluno muito inteligente, e não de um mestre - ele não está “ensinando no Templo”, como muitas vezes dizemos em nossas tradições.

Aqui Lucas antecipa para os doze anos o que realmente ocorrerá mais tarde, quando Jesus realmente ensina no Templo e sofre a rejeição e a perseguição por parte dos doutores de Lei e Sumos Sacerdotes.

            O ponto central do texto se acha em versículo 49: “Porque me procuravam? Não sabiam que eu devo estar na casa do meu Pai?”

            Aqui Lucas relata as primeiras palavras de Jesus no seu Evangelho. Agora não é Gabriel, nem Zacarias, nem Maria quem diz quem é Jesus, mas ele mesmo. A palavra que nos traduzimos como “devo”, em grego “dei”, transmite o tema de “necessidade”, que aparece no Evangelho 18 vezes e nos Atos dos Apóstolos 22 vezes, e “expressa um senso de compulsão divina, frequentemente visto como obediência à uma ordem da escritura ou profecia, ou na conformidade de eventos com a vontade de Deus. Aqui a necessidade consiste no relacionamento inerente de Jesus a Deus, que exige obediência.” (Marshall - “The Gospel of Luke”)

            Em versículo 50, fica claro que os seus pais não entenderam que o seu relacionamento com o Pai celeste tomava precedência sobre a sua relação com eles: “Eles não compreenderam o que o menino acabava de lhes dizer.”

            A “espada”- a dor de sentir este distanciamento sem poder compreendê-lo e da que falou Simeão em 2,35 - já começa a aparecer. Maria não compreende plenamente - retomando o tema de v. 19 - e tem que continuar a sua caminhada de fé, meditando sobre o sentido e identidade do seu filho. Fato encorajador para nós. Quantas vezes acontecem coisas nas nossas vidas que não compreendemos, e nelas nem conseguimos ver a vontade de Deus. Ao exemplo de Maria e José, aceitemos esta escuridão, continuemos a caminhada, mas nunca deixemos, com atitude de oração de contemplação, de “conservar no nosso coração todas essas coisas”

Missa da Noite do Natal 

Lc 2, 1-14

Esta passagem é típica do estilo de Lucas e contém muito material peculiar a ele. Ele toma as tradições de que Maria e José eram de Nazaré e que Jesus nasceu em Belém, liga-as com as figuras de Augusto, Herodes o Grande e o Governador Quirino, e através destas figuras tece um texto que une oito dos seus temas favoritos: “comida”, “graça”, “alegria”, “pequenez”, “paz”, “salvação”, “hoje”, e “universalismo”. Lucas é um verdadeiro artista das palavras evangélicas!

Este trecho pode ser subdivido assim:

1) O contexto histórico e o nascimento de Jesus - 2, 1-7

2) Pronunciamentos angélicos explicando o sentido de Jesus - 2, 8-14

3) Respostas aos pronunciamentos dos anjos - 2, 15-20 A chave para a compreensão do texto se acha nos versículos 11-14. Aqui Lucas apresenta Jesus como o Messias davídico que trará o dom escatológico de paz, o Shalôm de Deus. Assim ele faz contraste com a figura de César Augusto. Na impotência da sua infância, Jesus é o Salvador que traz a verdadeira paz, em contraste com o poderoso Augusto, que era celebrado no culto oficial imperial como o fundador de um reino de paz, a “Pax Romana”. O “Shalom” é, na verdade, o contrário da “Pax Romana” como hoje seria o oposto da pretensa “paz” imposta pelos canhões e bombardeiros das forças militares prepotentes!. Essa revelação da parte dos anjos é recebida e aceita pelos humildes pastores e meditada por Maria, modelo de fé, e os discípulos, que terão que meditar e aprofundar o sentido de Jesus para eles, sem cessar! Desde a Idade Média, o presépio tem mantido o seu lugar como um dos símbolos mais caros aos cristãos. Porém é bom não deixar que a cena do nascimento de Jesus se torne uma cena somente sentimental, com lembranças saudosas da nossa infância! O relato quer sublinhar a opção de Deus que se encarnou como pobre, sem as mínimas condições para um parto digno. Em nossos presépios até o boi e o asno tomaram banho! A realidade de nascer em uma gruta ou estrebaria era diferente! Jesus nasce em condições semelhantes a milhões de pobres e excluídos pelo mundo afora, nos dias de hoje! É mais uma manifestação da fraqueza de Deus, que é mais forte do que os homens! (I Cor 1, 25).

Diferente de Mateus - que tem outros interesses teológicos - os protagonistas dessa cena são os pastores. Na época eles eram considerados pessoas desqualificadas, marginais, sujas, ritualmente impuras. É para essa gente que os anjos revelam o sentido do acontecido e são eles os primeiros a encontrar Jesus recém-nascido. Assim, em Lucas, são pessoas à margem da sociedade que testemunham o nascimento de Jesus e igualmente são pessoas desqualificadas que são as testemunhas da Ressurreição - as mulheres! Lucas não perde oportunidade para destacar a opção preferencial de Deus pelos pobres e humilhados!

O trecho continua com mais três ênfases tipicamente lucanas - “não ter medo”, “sentir e expressar alegria” e o termo “hoje”. Os ouvintes poderão ter coragem e alegria, porque a salvação de Deus irrompe no mundo “hoje” - não em uma data futura distante. Esta idéia volta diversas vezes - na sinagoga, depois de fazer a leitura de Isaías, Jesus dirá que “hoje cumpriu-se essa passagem” (4, 21); a Zaqueu, Jesus afirma que “hoje a salvação entrou nessa casa” (18, 9); ao condenado na cruz, Jesus garante que “hoje estará comigo no paraíso” (23, 43). O Reino da Salvação está sendo inaugurado por Jesus, na fraqueza da exclusão social e não por César, com toda a pompa da corte e das armas! Em uma manjedoura e não em palácio imperial! Por parte de quem carece de força e prestígio e não pelos poderosos e fortes do mundo!

Os pastores não somente testemunham a presença do recém-nascido em Belém, mas anunciam o que disseram os anjos (v. 17). Essa Boa-Notícia complementa o que foi já anunciado à Maria em 1, 31-33, por Maria em 1, 46-45, e por Zacarias em 1, 68-79. É muito significativo o termo que Lucas emprega para descrever a reação de Maria: “Maria, porém, conservava todos esses fatos, e meditava sobre eles em seu coração” (v. 19). Aqui Lucas retrata, através de Maria, a atitude do/a discípulo/a diante dos mistérios de Deus, revelados em Jesus - Maria não capta o significado pleno dos eventos e os rumina no seu íntimo. A idéia volta de novo em Lc 2, 51: “Sua mãe conservava no coração todas essas coisas”. É uma maneira de apontar para a caminhada de fé que Maria trilhou - e que todos nós, que não captamos o sentido pleno da ação de Deus em nossas vidas, teremos que andar.

O texto encerra afirmando que os pobres e marginalizados - personificados nos pastores: “voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que haviam visto e ouvido” (v. 20). Qualquer celebração de Natal que não dê para os oprimidos motivo para alegria, coragem e louvor a Deus, pode ser tudo, menos uma celebração cristã!

Missa da Aurora: Lc 2, 15-20

 Apesar da sua mensagem ser quase abafada pela euforia do consumismo e materialismo que transforma a grande festa cristã do Natal do Senhor numa verdadeira orgia pagã de esbanjamento e exclusão, a história do nascimento do Senhor, contada nas palavras singelas de Lucas, perdura ainda com a sua mensagem profunda de paz, união, solidariedade e amor, que o néo-paganismo pós-moderno da nossa sociedade é incapaz de ofuscar.

As Missas da vigília e da aurora usam dois textos contínuos da Lucas, que realmente formam um mosaico teológico de grande beleza, através da sua habilidade literária.  Lucas pega as tradições que põe a origem de Maria e José em Nazaré e junto-as às que colocam o nascimento de Jesus em Belém, e as insere na história humana e universal, através das suas referências a grandes figuras históricas da época, César Augusto, Herodes o Grande e o governador da Síria, Quirino.  Nesse contexto ele tece uma rede que contem oito dos seus temas preferidos – alimento, graça, alegria, pequenez, paz, salvação, “hoje”, e universalismo, para trazer à humanidade de todos os tempos “uma boa notícia, uma alegria para todo o povo”(2, 10).

Embora haja uma confusão sobre as referências cronológicos na Lucas, pois Quirino não foi governador no tempo de Herodes e não se tem informações extra-bíblicas sobre um recenseamento feito por Augusto, a finalidade de Lucas é situar o nascimento do Salvador bem dentro da história humana – e especialmente a história humana dos pobres e excluídos.  Jesus nasce filho de viajantes, forcados a sair da sua casa pela força opressora do império, pois a finalidade dum recenseamento era alistar todos para cobrança de impostos.  Assim o Messias nasce em condições subumanas e indignas – como nascem e se criam milhões de crianças todos os anos na nossa sociedade atual.  Como não teve lugar para eles na “hospedaria” (um tipo de albergue para viajantes, onde os animais ficavam no pátio, no primeiro andar tinha cozinha comunitária e no segundo andar dormitórios, algo ainda comum em certas regiões do Oriente hoje), Maria dá à luz numa gruta ou estrebaria e deita Jesus numa manjedoura. 

Logo Lucas introduz mais personagens tirados dos excluídos da religião e sociedade de então – os pastores.  No tempo de Jesus eram considerados como delinqüentes, dispostos sempre ao roubo e à pilhagem, por isso não mereciam confiança alguma e nem podiam testemunhar em juízo.  É importante notar que em Lucas são pessoas pertencentes a duas categorias proibidas de dar testemunho em juízo (pastores e mulheres) que Deus escolhe para testemunhar os dois eventos mais importantes da história – o nascimento e a ressurreição do Salvador.  Natal se torna festa de inclusão dos que a religião oficial e a sociedade dominante excluía – enquanto a maioria da classe abastada da nossa sociedade atual celebra o Natal exatamente nos templos de consumo de hoje – os Shoppings, onde pessoas pobres são excluídas do banquete de poucos.  Que contradição!!!

É importante também por em relevo a mensagem dos anjos: "Glória a Deus no alto, e na terra paz aos homens que ele ama” (v 14).  Aqui Lucas cria um binômio – dois elementos conjugados, ou seja, uma maneira de dar glória a Deus no alto é a criação da paz entre as pessoas aqui na terra.  Atrás do termo “paz” há um cabedal de reflexão teológica, vindo do Antigo Testamento.  O nosso termo “paz” capta somente uma parte do que significava a palavra hebraica “Shalôm", que não se limita a uma mera ausência de violência física, mas inclui a realização de tudo que Deus deseja para os seus filhos e filhas.  Portanto o texto natalino nos convida e desafia para que demos glória a Deus através do nosso esforço em criar um mundo de Shalôm – onde todos possam “ter a vida e a vida em abundância!” (cf Jo 10,10)

É importante também refletir como Lucas nos apresenta a pessoa da Maria neste texto.  Enquanto todos os que ouviam os pastores “assombravam-se” (v. 18), “Maria porém conservava isso e meditava tudo em seu íntimo”(v 19).   Dois textos do Antigo Testamento usam o mesmo verbo grego (synetèrein): Gn 37,11 e Dn 4, 28, para descrer a perplexidade íntima duma pessoa que procura entender o significado profundo dum fato.  Assim Lucas enfatiza que Maria não captou de imediato todo o sentido do que ouviu, mas meditava as palavras, contemplando-as, para descobrir o seu significado.  Maria cresceu na fé, acolhendo e discernindo o sentido profundo dos acontecimentos – se torna peregrina na fé, modelo para todos nós, nos convidando a nos mergulharmos nos relatos evangélicos, contemplando os mistérios da vida de Jesus e o que eles podem significar para nós hoje.

A festa de Natal é uma oportunidade ímpar para nos aprofundarmos no sentido do amor de Deus por nós, expressado na Encarnação.  Mas, se fizermos dele somente uma festa de consumismo e materialismo, jamais colheremos os seus frutos.  Sem deixar do lado o seu lado lúdico, familiar e festivo, cuidemos para não sermos seduzidos pelos ídolos do ter e do prazer tão bem promovidos pelo marketing dos Shoppings – mas retornemos à singeleza da gruta de Belém e redescubramos o motivo duma verdadeira “alegria para todo o povo”, - nasceu para nos o Salvador!

Missa Do Dia: Jo, 1, 1-18.

“O Verbo se fez carne e armou sua tenda no meio de nós”

 Embora sejamos muito mais familiarizados com as leituras de Lucas, referente ao nascimento do Salvador em Belém, na realidade o Evangelho da Missa do Dia, tirado do prólogo de João, nos traz o sentido profundo dos eventos do primeiro Natal.

O texto gira ao redor do “Verbo” ou “Palavra” – “Logos” em grego.  Enquanto Marcos somente começa o seu relato do Evangelho de Jesus com o seu batismo e Lucas e Mateus remontam até a sua concepção, o Quarto Evangelho liga Jesus à sua preexistência, desde o começo:

“No princípio já existia a Palavra

e a Palavra estava com Deus

e a Palavra era Deus......

a Palavra se fez homem

e armou sua tenda entre nós”( 1, 1.14)

Mesmo que se expresse sobre Jesus em termos não tão familiares para nós (Verbo, ou Palavra), João se coloca bem na tradição do Antigo Testamento.  Embora use a palavra grega “Logos”, para expressar a identidade de Jesus como o Verbo, na sua mente não está uma discussão abstrata sobre o Logos dos filósofos gregos, mas muito mais o sentido teológico do termo hebraico “Dabar”, que indica a Palavra criadora, congregadora e libertadora de Deus, expressão do Deus de amor de libertação.

O projeto de Deus acontece quando essa palavra se fez homem, armou a sua tenda (ou acampou) entre nós.  O verbo grego usado “eskênôsen” deriva-se do termo “skêne, que significa uma tenda de campanha. Na visão do Quarto Evangelho, A Palavra, o Verbo Divino, “armou sua tenda” no meio da humanidade, não “ergueu o seu Templo!”  Templo é fixo, tenda é móvel, ou seja, aonde anda o povo, lá estará a Palavra Viva de Deus, encarnada na pessoa e projeto de Jesus de Nazaré.  Nele e por ele a Palavra Criadora age, operando a salvação aqui na terra.  Podemos afirmar que o mistério da Palavra tem agora como centro a Pessoa de Jesus Cristo, inseparável da sua missão e projeto.

Mas essa encarnação tornou-se o divisor das águas para a humanidade.  Pois “Veio aos seus e os seus não a acolheram”.  Assim o texto desafia qualquer acomodação que porventura possa existir entre os cristãos, pois "acolher” a Palavra encarnada não é em primeiro lugar uma crença intelectual, mas o assumir dum projeto de vida, o seguimento de Jesus de Nazaré.  É uma adesão radical à pessoa e missão de Jesus, continuada em nós hoje.  Como diz o Evangelho de Mateus, “nem todo aquele que me disser “Senhor, senhor!” entrará no reino de Deus, mas aquele que cumprir a vontade de meu Pai do céu”(Mt 7,21).

O nosso texto nos anima para que não esfriemos no seguimento de Jesus, e nos diz “Aos que a receberam, os tornou capazes de ser filhos de Deus, os que creram nele, os que não nasceram do sangue, nem do desejo da carne, nem do desejo do homem, mas de Deus” (Jo 1,12s).

Que a celebração da grande festa de hoje nos confirme na nossa fé nesse Deus que se encarnou entre nós, “tomando a condição de escravo, fazendo-se semelhante aos homens” (Fil 2, 7) e como resultado dessa renovação espiritual nos encoraje para continuarmos na luta para criar o mundo que Deus quer – de justiça, solidariedade e fraternidade, no caminho do Reino, onde “todos tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).  Como nos diz Hebreus:  "Corramos com perseverança na corrida, mantendo os olhos fixos em Jesus, autor e consumidor da fé...Para que vocês não se cansem e não percam o ânimo, pensem atentamente em Jesus”(Hb 12, 1-3)

Pe. Thomas Hughes, SVD

SEGUNDO DOMINGO DO ADVENTO (06.12.15)

 Lucas 3,1-6

“Esta é a voz de quem grita no deserto: preparem o caminho do Senhor”

 Atrás das informações históricas deste texto, referentes às autoridades seculares e religiosas que teriam influência nos primórdios do cristianismo, jaz a realidade trágica da resposta negativa deles à Palavra de Deus e aos seus mensageiros, João o Batista, e Jesus, o Cristo!  Na pessoa do Pôncio Pilatos, a autoridade romana vai agir na decisão de assassinar o Messias;  entre os governantes da Palestina, Herodes Antipas aparece diversas vezes no Evangelho, sempre com juízo negativo, e será o responsável pela morte de João, além de estar presente no sofrimento  de Jesus na Semana Santa;  Anás (Sumo Sacerdote de 6 - 15 d.C) e o seu genro Caifás (Sumo Sacerdote de 18 -37 d.C) só funcionam porque os romanos permitiam e realmente foi a eles que serviam. Os Sumos Sacerdotes sempre serão hostis a Jesus e à sua pregação e no fundo eram eles os responsáveis pela sua morte. No meio deste elenco de poderosos corruptos e perseguidores, Deus manda João Batista, como arauto do novo tempo de graça e salvação. Deus não permite que a perversidade e a maldade tenham a palavra final na história da humanidade.  Essa será mais tarde a mensagem básica do Apocalipse - o mal já é um derrotado, e embora possa parecer diferente, é Deus e não a maldade que controla a caminhada da história.  Mensagem de conforto às comunidades sofridas do fim do primeiro século.  Mas esta vitória não se concretiza sem que haja luta, sacrifício, e cruz! Lucas põe na boca de João um trecho de Isaías: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparem o caminho do Senhor, endireitem as suas estradas.  Todo vale será aterrado, toda montanha e colina serão aplainadas; as estradas curvas ficarão retas, e os caminhos esburacados serão nivelados.  E todo homem verá a salvação de Deus”( v.4-6) Sem dúvida, podemos entender este trecho com sentido metafórico, como descrição de uma mudança radical no estilo de vida de quem quer aceitar o convite à penitência e ao arrependimento.  Os vales a serem aterrados, as montanhas e colinas a serem aplainadas, os caminhos esburacados a serem nivelados, simbolizam os empecilhos em nossas vidas a um seguimento mais radical e coerente de Jesus. Quem aceita a sua mensagem terá que mudar radicalmente - isso é, na raiz - a sua vida.  Advento, embora não seja tempo de penitência no sentido que a Quaresma é, se torna tempo oportuno para uma revisão de vida, para descobrir quais são as curvas, montanhas, e pedras que teremos que tirar para que o Senhor realmente possa habitar nos nossos corações. O Papa Francisco indica um elemento a ser vivido mais profundamente na vida individual de todo cristão, e na comunidade da Igreja: A misericórdia, tema tão caro ao autor do Terceiro Evangelho, e algo que muitas vezes falta nas nossas relações em todos os níveis.

O último versículo:“E todo homem verá a salvação de Deus”( v. 6) faz eco ao tema lucano da universalidade da salvação, usando esta frase que não se encontra no texto paralelo de Mc 1,3.  Ninguém é excluída da mensagem e oferta da salvação.  Mas a resposta depende de cada um de nós!

TERCEIRO DOMINGO DO ADVENTO (13.12.15)

 Lucas 3, 10-18

 “Ele é quem batizará vocês com o Espírito Santo e com fogo”

 Esta passagem trata da pregação de João Batista, que: “Percorria toda a região do rio Jordão, pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados”( v.3)

O início do texto, versículos 10-14, que constam somente em Lucas,  mostra bem a sua teologia e contexto - não são os líderes religiosos que estão prontos para arrepender-se, mas o povo comum e até pessoas que estavam à margem da sociedade - como cobradores de impostos e soldados.  Mais adiante no Evangelho são estas as pessoas que vão responder positivamente diante da pregação do próprio Jesus.  Escrevendo para as comunidades pelo ano 80-85 d.C., Lucas quer lembrar aos cristãos que eles também devam estar abertos para achar sinceridade e bondade fora das vias “aceitáveis” - como fizeram João e Jesus!

A frase lapidar do trecho é a pergunta que os diversos grupos formulam para João: “O que devemos fazer?”  Esta pergunta aparece mais vezes no Terceiro Evangelho, em Lc 10, 25 (na boca dum doutor da Lei) e Lc 18,18 (uma pessoa importante), e também nos Atos dos Apóstolos: At 2,37 (os judeus depois da pregação do Pedro), At 16,30  (o carcereiro gentio de Filipos), At 22,10 (Saulo, o perseguidor).  Usando este artifício, Lucas quer salientar que é uma pergunta que tem que ser feita constantamente durante a nossa caminhada.  Não há cristão que possa se dispensar de fazê-la sempre, por achar que já sabe a resposta.

É interessante que João, embora uma pessoa de cunho fortemente ascético, não exige sacrifícios ou práticas religiosos como jejum e abstinência.  Ela enfatiza uma exigência muito mais radical, que atinge o cerne do nosso ser - uma preocupação com os mais pobres, manifestada na busca de justiça e solidariedade.  As Campanhas da Fraternidade seguem esta linha de João - pois muitas vezes é mais fácil abster-se de uma carne ou uma bebida do que engajar-se na luta por um mundo melhor.

Este trecho traz à tona mais uma vez um dos temas principais do Evangelho de Lucas - o uso correto dos bens materiais.  No fundo, João aqui prega antecipadamente o que mais tarde Jesus vai ensinar - a partilha dos bens com as pessoas que sofrem necessidades, a justiça nos relacionamentos econômicos e políticos,  a conversão que se manifesta numa mudança radical da vida.

A segunda parte da passagem insiste que João é inferior a Jesus.  João batiza com água como agente de purificação, mas Jesus usará a força purificadora maior do Espírito Santo e do fogo.  Lucas vai mostrar em Atos 2 - na história de Pentecostes - como o fogo do Espírito Santo cumpre a sua missão nas pessoas.

O texto termina com a declaração que “João anunciava a Boa Notícia ao povo de muitos  outros modos”(v.18). O que João prega é tão semelhante ao que Jesus pregará que também merece ser taxado de “Boa Notícia”.  A boa notícia da chegada da misericórdia e da salvação de Deus de uma forma gratuita, mas que exige resposta decidida de cada pessoa.  É a crise existencial do mundo todo - aceitar ou rejeitar a salvação oferecida gratuitamente em Jesus.  Para Lucas esta decisão tem que ser renovada sempre, através da pergunta “o que devemos fazer”, enquanto continuamos andando “pelo caminho”!

QUARTO DOMINGO DO ADVENTO (20.12.15)

Lucas 1,39-45

“Bendito o fruto do seu ventre!”

 Para entender bem a finalidade de Lucas em relatar os eventos ligados à concepção e nascimento de Jesus, é essencial conhecer algo da sua visão teológica. Para ele, o importante é acentuar o grande contraste, e também a continuidade,  entre a Antiga e a Nova Aliança.  A primeira está retratada nos eventos que giram ao redor do nascimento de João Batista, e tem os seus representantes em Isabel, Zacarias e João;  a segunda está nos relatos ao redor do nascimento de Jesus, com as figuras de Maria, José e Jesus.   Para Lucas, a Antiga Aliança está esgotada - os seus símbolos são Isabel, estéril e idosa, Zacarias, sacerdote que não acredita no anúncio do anjo, e o nené que será um profeta, figura típica do Antigo Testamento.   Em contraste, a Nova Aliança tem como símbolos a virgem jovem de Nazaré que acredita e cujo filho será o próprio Filho de Deus.  Mais adiante Lucas enfatiza este contraste nas figuras de Ana e Simeão, no Templo, (Lc 2, 25-38),  quando Simeão reza: “Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes  deixar o teu servo partir em paz.  Porque meus olhos viram a tua salvação”(2, 29)

Assim, não devemos reduzir o texto de hoje a um relato que pretende mostrar a caridade de Maria em cuidar da sua parente idosa e grávida.  Se a finalidade de Lucas fosse mostrar Maria como modelo de caridade, não teria colocado versículo 56, que mostra ela deixando Isabel na hora de maior necessidade: “Maria ficou três meses com Isabel; e depois voltou para casa,” antes do nascimento de João.

Também não é verossímil que uma moça judia de mais ou menos quatorze anos enfrentasse uma viagem tão perigosa como a de Galiléia à Judéia!  A intenção de Lucas é literária e teológica.  Ele coloca juntas as duas gestantes, para que ambas possam louvar a Deus pela sua ação nas suas vidas e para que fique claro que o filho de Isabel é o precursor do filho de Maria.   Por isso, Lucas tira Maria de cena antes do nascimento de João, para que cada relato tenha somente as suas personagens principais: de um lado, Isabel, Zacarias e João; do outro lado, Maria, José e Jesus.

O fato que a criança “se agitou” no ventre de Isabel faz recordar algo semelhante na história de Rebeca, quando Esaú e Jacó “pulavam” no seu ventre, na tradução da Septuaginta de Gn 25,22.  O contexto, especialmente versículo 43, salienta que João reconhece que Jesus é o seu Senhor.  Com a iluminação do Espírito Santo, Isabel pode interpretar a “agitação” de João no seu ventre - é porque Maria está carregando o Senhor.  As palavras referentes a Maria: “Você é bendita entre as mulheres, e bendito é o fruto do seu ventre”(v. 42) fazem lembrar mais duas mulheres que ajudaram na libertação do seu povo, no Antigo Testamento: Jael (Jz 5,24) e Judite (Jd 13,18).  Aqui Isabel louva a Maria que traz no seu ventre o libertador definitivo do seu povo.

Finalmente, vale destacar o motivo pelo qual Isabel chama Maria de “bem-aventurada” (v. 45): “Bem-aventurada aquela que acreditou.”  Maria é bendita em primeira lugar, não pela sua maternidade somente, mas pela fé - em contraste com Zacarias, que não acreditou.  Assim, Lucas apresenta Maria principalmente como modelo  de fé. Notemos que neste capítulo primeiro nós encontramos frases que podem fundamentar uma compreensão correta da visão bíblica da pessoa e função de Maria, que pode unir em lugar de dividir cristãos das diversas confissões: “Ave Maria” (1,28); “Cheia de graça” (1,28), “O Senhor é convosco”(1,28), “Bendita sois vós entre as mulheres”(1, 42), “Bendito o fruto do vosso ventre”(1,42). Lucas nos apresenta a mãe do Senhor como modelo de fé para todos nós! Benditos somos nós, se realmente acreditarmos na Palavra de Deus!