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Missa da Noite do Natal 
Lc 2, 1-14


Esta passagem é típica do estilo de Lucas e contém muito material peculiar a ele.

Ele toma as tradições de que Maria e José eram de Nazaré e que Jesus nasceu em Belém, liga-as com as figuras de Augusto, Herodes o Grande e o Governador Quirino, e através destas figuras tece um texto que une oito dos seus temas favoritos: “comida”, “graça”, “alegria”, “pequenez”, “paz”, “salvação”, “hoje”, e “universalismo”. Lucas é um verdadeiro artista das palavras evangélicas! Este trecho pode ser subdivido assim:
1) O contexto histórico e o nascimento de Jesus - 2, 1-7
2) Pronunciamentos angélicos explicando o sentido de Jesus - 2, 8-14
3) Respostas aos pronunciamentos dos anjos - 2, 15-20
A chave para a compreensão do texto se acha nos versículos 11-14. Aqui Lucas apresenta Jesus como o Messias davídico que trará o dom escatológico de paz, o Shalôm de Deus. Assim ele faz contraste com a figura de César Augusto. Na impotência da sua infância, Jesus é o Salvador que traz a verdadeira paz, em contraste com o poderoso Augusto, que era celebrado no culto oficial imperial como o fundador de um reino de paz, a “Pax Romana”. O “Shalom” é, na verdade, o contrário da “Pax Romana” como hoje seria o oposto da pretensa “paz” imposta pelos canhões e bombardeiros das forças militares prepotentes. Essa revelação da parte dos anjos é recebida e aceita pelos humildes pastores e meditada por Maria, modelo de fé, e os discípulos, que terão que meditar e aprofundar o sentido de Jesus para eles, sem cessar!
Desde a Idade Média, o presépio tem mantido o seu lugar como um dos símbolos mais caros aos cristãos. Porém, é bom não deixar que a cena do nascimento de Jesus se torne uma cena somente sentimental, com lembranças saudosas da nossa infância! O relato quer sublinhar a opção de Deus que se encarnou como pobre, sem as mínimas condições para um parto digno. Em nossos presépios, até o boi e o asno tomaram banho antes de serem colocados! A realidade de nascer em uma gruta ou estrebaria era diferente! Jesus nasce em condições semelhantes a milhões de pobres e excluídos pelo mundo afora, nos dias de hoje! É mais uma manifestação da fraqueza de Deus, que é mais forte do que os homens! (I Cor 1, 25).
Diferente de Mateus - que tem outros interesses teológicos - os protagonistas dessa cena são os pastores. Na época, eles eram considerados pessoas desqualificadas, marginais, sujas, ritualmente impuras. É para essa gente que os anjos revelam o sentido do acontecido e são eles os primeiros a encontrar Jesus recém-nascido. Assim, em Lucas, são pessoas à margem da sociedade que testemunham o nascimento de Jesus e igualmente são pessoas desqualificadas que são as testemunhas da Ressurreição - as mulheres! Lucas não perde uma oportunidade para destacar a opção preferencial de Deus pelos pobres e humilhados!
O trecho continua com mais três ênfases tipicamente lucanas - “não ter medo”, “sentir e expressar alegria” e o termo “hoje”. Os ouvintes poderão ter coragem e alegria, porque a salvação de Deus irrompe no mundo “hoje” - não em uma data futura distante. Esta ideia volta diversas vezes - na sinagoga, depois de fazer a leitura de Isaías, Jesus dirá que “hoje cumpriu-se essa passagem” (4, 21); a Zaqueu, Jesus afirma que “hoje a salvação entrou nessa casa” (18, 9); ao condenado na cruz, Jesus garante que “hoje estará comigo no paraíso” (23, 43). O Reino da Salvação está sendo inaugurado, e por Jesus, na fraqueza da exclusão social, e não por César, com toda a pompa da corte e das armas! Em uma manjedoura e não em um palácio imperial! Por parte de quem carece de força e prestígio, e não pelos poderosos e fortes do mundo!
Os pastores não somente testemunham a presença do recém-nascido em Belém, mas anunciam o que disseram os anjos (v. 17). Essa Boa-Notícia complementa o que foi já anunciado à Maria em 1, 31-33, por Maria em 1, 46-45, e por Zacarias em 1, 68-79. É muito significativo o termo que Lucas emprega para descrever a reação de Maria: “Maria, porém, conservava todos esses fatos, e meditava sobre eles em seu coração” (v. 19). Aqui Lucas retrata, através de Maria, a atitude do/a discípulo/a diante dos mistérios de Deus, revelados em Jesus - Maria não capta o significado pleno dos eventos e os rumina no seu íntimo. A ideia volta de novo em Lc 2, 51: “Sua mãe conservava no coração todas essas coisas”. É uma maneira de apontar para a caminhada de fé que Maria trilhou - e que todos nós, que não captamos o sentido pleno da ação de Deus em nossas vidas, teremos que andar.
O texto encerra afirmando que os pobres e marginalizados - personificados nos pastores: “voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que haviam visto e ouvido” (v. 20). Qualquer celebração de Natal que não dê para os oprimidos motivo para alegria, coragem e louvor a Deus, e que não nos ajude a sermos comprometidos com  a causa dos sofridos pode ser tudo, menos uma celebração cristã!
 
Missa da Aurora: Lc 2, 15-20
 Apesar da sua mensagem ser quase abafada pela euforia do consumismo e materialismo que transforma a grande festa cristã do Natal do Senhor em uma verdadeira orgia pagã de esbanjamento e exclusão, a história do nascimento do Senhor, contada nas palavras singelas de Lucas, perdura ainda com a sua mensagem profunda de paz, união, solidariedade e amor, que o neopaganismo pós-moderno da nossa sociedade é incapaz de ofuscar.
As Missas da vigília e da aurora usam dois textos contínuos da Lucas, que realmente formam um mosaico teológico de grande beleza, através da sua habilidade literária.  Lucas pega as tradições que põe a origem de Maria e José em Nazaré e as liga às que colocam o nascimento de Jesus em Belém, inserindo-as na história humana e universal, através das suas referências a grandes figuras históricas da época, César Augusto, Herodes o Grande e o governador da Síria, Quirino.  Nesse contexto ele tece uma rede que contem oito dos seus temas preferidos – alimento, graça, alegria, pequenez, paz, salvação, “hoje”, e universalismo, para trazer à humanidade de todos os tempos “uma boa notícia, uma alegria para todo o povo”(2, 10).
Embora haja uma confusão sobre as referências cronológicas em Lucas, pois Quirino não foi governador no tempo de Herodes e não se tem informações extra-bíblicas sobre um recenseamento feito por Augusto, a finalidade de Lucas é situar o nascimento do Salvador bem dentro da história humana – e especialmente a história humana dos pobres e excluídos.  Jesus nasce filho de viajantes, forçados a sair da sua casa pela força opressora do império, pois a finalidade de um recenseamento era alistar todos para a cobrança de impostos.  Assim o Messias nasce em condições subumanas e indignas – como nascem e se criam milhões de crianças todos os anos na nossa sociedade atual.  Como não teve lugar para eles na “hospedaria” (um tipo de albergue para viajantes, onde os animais ficavam no pátio, no primeiro andar tinha cozinha comunitária e no segundo andar dormitórios, algo ainda comum em certas regiões do Oriente hoje), Maria dá à luz em uma gruta ou estrebaria e deita Jesus em uma manjedoura. 
Logo Lucas introduz mais personagens tirados dos excluídos da religião e sociedade de então – os pastores.  No tempo de Jesus eram considerados como delinqüentes, dispostos sempre ao roubo e à pilhagem, por isso não mereciam confiança alguma e nem podiam testemunhar em juízo.  É importante notar que em Lucas são pessoas pertencentes a duas categorias proibidas de dar testemunho em juízo (pastores e mulheres) que Deus escolhe para testemunhar os dois eventos mais importantes da história – o nascimento e a ressurreição do Salvador.  Natal se torna festa de inclusão dos que a religião oficial e a sociedade dominante excluia – enquanto a maioria da classe abastada da nossa sociedade atual celebra o Natal exatamente nos templos de consumo de hoje – os Shoppings, onde pessoas pobres são excluídas do banquete de poucos.  Que contradição!!!
É importante também por em relevo a mensagem dos anjos: "Glória a Deus no alto, e na terra paz aos homens que ele ama” (v 14).  Aqui Lucas cria um binômio – dois elementos conjugados, ou seja, uma maneira de dar glória a Deus no alto é a criação da paz entre as pessoas aqui na terra.  Atrás do termo “paz” há um cabedal de reflexão teológica, vindo do Antigo Testamento.  O nosso termo “paz” capta somente uma parte do que significava a palavra hebraica “Shalôm", que não se limita a uma mera ausência de violência física, mas inclui a realização de tudo que Deus deseja para os seus filhos e filhas.  Portanto o texto natalino nos convida e desafia para que demos glória a Deus através do nosso esforço em criar um mundo de Shalôm – onde todos possam “ter a vida e a vida em abundância!” (cf. Jo 10,10)
É importante também refletir como Lucas nos apresenta a pessoa da Maria neste texto.  Enquanto todos os que ouviam os pastores “assombravam-se” (v. 18), “Maria porém conservava isso e meditava tudo em seu íntimo”(v 19).   Dois textos do Antigo Testamento usam o mesmo verbo grego (synetèrein): Gn 37,11 e Dn 4, 28, para descrer a perplexidade íntima de uma pessoa que procura entender o significado profundo de um fato.  Assim Lucas enfatiza que Maria não captou de imediato todo o sentido do que ouviu, mas meditava as palavras, contemplando-as, para descobrir o seu significado.  Maria cresceu na fé, acolhendo e discernindo o sentido profundo dos acontecimentos – se torna peregrina na fé, modelo para todos nós, nos convidando a nos mergulharmos nos relatos evangélicos, contemplando os mistérios da vida de Jesus e o que eles podem significar para nós hoje.
A festa de Natal é uma oportunidade ímpar para nos aprofundarmos no sentido do amor de Deus por nós, expressado na Encarnação.  Mas, se fizermos dele somente uma festa de consumismo e materialismo, jamais colheremos os seus frutos.  Sem deixar do lado o seu lado lúdico, familiar e festivo, cuidemos para não sermos seduzidos pelos ídolos do ter e do prazer tão bem promovidos pelo marketing dos Shoppings – mas retornemos à singeleza da gruta de Belém e redescubramos o motivo duma verdadeira “alegria para todo o povo”, - nasceu para nos o Salvador!
 
Missa Do Dia: Jo, 1, 1-18.
 “O Verbo se fez carne e armou sua tenda no meio de nós”
 Embora sejamos muito mais familiarizados com as leituras de Lucas, referente ao nascimento do Salvador em Belém, na realidade o Evangelho da Missa do Dia, tirado do prólogo de João, nos traz o sentido profundo dos eventos do primeiro Natal.
O texto gira ao redor do “Verbo” ou “Palavra” – “Logos” em grego.  Enquanto Marcos somente começa o seu relato do Evangelho de Jesus com o seu batismo e Lucas e Mateus remontam até a sua concepção, o Quarto Evangelho liga Jesus à sua preexistência, desde o começo:
“No princípio já existia a Palavra
e a Palavra estava com Deus
e a Palavra era Deus......
a Palavra se fez homem e armou sua tenda entre nós”( 1, 1.14)
Mesmo que se fale sobre Jesus em termos não tão familiares para nós (Verbo, ou Palavra), João se coloca bem na tradição do Antigo Testamento.  Embora use a palavra grega “Logos”, para expressar a identidade de Jesus como o Verbo, na sua mente não está uma discussão abstrata sobre o Logos dos filósofos gregos, mas muito mais o sentido teológico do termo hebraico “Dabar”, que indica a Palavra criadora, congregadora e libertadora de Deus, expressão do Deus de amor de libertação.
O projeto de Deus acontece quando essa palavra se fez homem, armou a sua tenda (ou acampou) entre nós.  O verbo grego usado “eskênôsen” deriva-se do termo “skêne, que significa uma tenda de campanha. Na visão do Quarto Evangelho, A Palavra, o Verbo Divino, “armou sua tenda” no meio da humanidade, não “ergueu o seu Templo!”  Templo é fixo, tenda é móvel, ou seja, aonde anda o povo, lá estará a Palavra Viva de Deus, encarnada na pessoa e projeto de Jesus de Nazaré.  Nele e por ele a Palavra Criadora age, operando a salvação aqui na terra.  Podemos afirmar que o mistério da Palavra tem agora como centro a Pessoa de Jesus Cristo, inseparável da sua missão e projeto.
Mas essa encarnação tornou-se o divisor das águas para a humanidade.  Pois “Veio aos seus e os seus não a acolheram”.  Assim o texto desafia qualquer acomodação que porventura possa existir entre os cristãos, pois "acolher” a Palavra encarnada não é em primeiro lugar uma crença intelectual, mas o assumir de um projeto de vida, o seguimento de Jesus de Nazaré.  É uma adesão radical à pessoa e à missão de Jesus, continuada em nós hoje.  Como diz o Evangelho de Mateus, “nem todo aquele que me disser “Senhor, Senhor!” entrará no reino de Deus, mas aquele que cumprir a vontade de meu Pai do céu” (Mt 7,21).
O nosso texto nos anima para que não esfriemos no seguimento de Jesus, e nos diz “Aos que a receberam, os tornou capazes de ser filhos de Deus, os que creram nele, os que não nasceram do sangue, nem do desejo da carne, nem do desejo do homem, mas de Deus” (Jo 1,12s).
Que a celebração da grande festa de hoje nos confirme na nossa fé nesse Deus que se encarnou entre nós, “tomando a condição de escravo, fazendo-se semelhante aos homens” (Fil 2, 7) e como resultado dessa renovação espiritual nos encoraje para continuarmos na luta para criar o mundo que Deus quer – de justiça, solidariedade e fraternidade, no caminho do Reino, onde “todos tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).  Como nos diz Hebreus:  "Corramos com perseverança na corrida, mantendo os olhos fixos em Jesus, autor e consumidor da fé...Para que vocês não se cansem e não percam o ânimo, pensem atentamente em Jesus”(Hb 12, 1-3).
Tomaz Hughes SVD
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