Mc 1, 12-15  “Durante quarenta dias, no deserto, ele foi tentado por satanás”  
 Os três evangelhos sinóticos contam a história das tentações de Jesus no deserto - Marcos de uma forma resumida, Mateus e Lucas mais detalhadamente. Mas, devemos lembrar que esses relatos procuram expressar uma experiência mística de Jesus, e então não devem ser interpretados ao pé da letra ou de uma maneira fundamentalista!
 Uma coisa logo chama a atenção – nos três Evangelhos as tentações vêm logo após o batismo de Jesus! O batismo significava o assumir público da sua identidade e missão, como Servo de Javé. Logo após esse compromisso, Ele tem que enfrentar as tentações. Aqui a experiência de Jesus é como a nossa própria - nós temos compromisso com o projeto de Deus, mas, entre o nosso compromisso e a nossa prática do seguimento de Jesus, existem muitas tentações!!

Marcos sublinha que “o Espírito impeliu Jesus para o deserto”. “Deserto” é essencialmente lugar ermo, árido, onde não há como escapar um confronto consigo mesmo – e com Deus. Ele não é em primeiro lugar um conceito geográfico, mas uma experiência de solidão – muitas vezes necessária e saudável – no mais íntimo do nosso ser.  O Espírito não conduz Jesus à tentação, mas é a força sustentadora d’Ele durante as suas tentações. Como o Espírito dava força a Jesus, Marcos quer ensinar às suas comunidades que elas também poderão contar com este apoio do Espírito Santo nos momentos difíceis da vivência da sua fé!  Isso vale para nós hoje, como indivíduos e como comunidades e Igrejas.
 O relato mais desenvolvido de Lucas (Lc 4, 1-14) pode nos ajudar a aprofundar o sentido das tentações de Jesus. Nelas podemos reconhecer as mesmas tentações que nós, individualmente e comunitariamente, enfrentamos na nossa caminhada da fé hoje! Primeiro Jesus é tentado a mandar que uma pedra se torne pão. Podemos ver aqui a tentação do “prazer” - logo que enfrenta um sacrifício por causa da sua opção, Jesus é tentado a escapar dele! Uma tentação das mais comuns hoje, em um mundo que prega a satisfação imediata dos nossos desejos, criando necessidades falsas através de sofisticadas campanhas de propaganda. Pois vivemos em uma sociedade que prega o individualismo, onde a regra é “se quer, faça!”, e onde sacrifício, doação e solidariedade são considerados como ladainha dos perdedores! É só olhar o número de casamentos que fracassam diante da primeira crise, ou a quantia de seminaristas, religiosos/as e padres que desistem, às vezes pouquíssimo tempo depois de professar os seus votos ou de se ordenar, diante de uma sentida falta de “auto-realização imediata”. A resposta de Jesus é contundente: “Não só de pão vive o homem”. O homem vive de pão certamente, mas não só! Jesus não é sádico, contra o necessário para viver dignamente. Mas salienta muito bem que não é somente a posse de bens que traz a felicidade, mas a busca de valores mais profundos, como a justiça, a partilha, a doação, a solidariedade com os sofredores. Não faz nenhum contraste falso entre bens materiais e espirituais – ambos são necessários para que se tenha a vida plena! Nessa frase, Jesus desautoriza tanto os que buscam a sua felicidade na simples posse de bens, como os que dispensam a luta pelo pão de cada dia para todos!
 A segunda tentação pode ser vista como a do “ter”. De novo algo muito atual! Nós vivemos na sociedade pós-moderna da globalização do mercado, do neoliberalismo, do consumismo, do “evangelho” do mercado livre. Diariamente, a televisão traz para dentro das nossas casas a mensagem de que é necessário “ter mais”, e que não importa “ser mais”! Como sempre, a tentação vem em forma atraente - até a Igreja pode cair na tentação de achar que a simples posse de bens, que podem ser usados em favor da missão, garantirá uma pregação mais evangélica. Isso sem falar das pregações midiáticas que glorificam um Deus que supostamente faz da posse de bens materiais sinal da sua bênção! Somos tentados a não acreditar na força dos pobres, de não seguir o caminho do carpinteiro de Nazaré. Jesus também teve que enfrentar esta tentação - Ele que veio para ser pobre com os pobres, para mostrar o Deus que opta preferencialmente pelos sofredores, é tentado a confiar nas riquezas! Para o diabo - e para o nosso mundo que idolatra o bem-estar material e o lucro, mesmo sacrificando a justiça social - Jesus afirma: “Você adorará o Senhor seu Deus, e somente a ele servirá” (v. 8).
 A terceira tentação pode ser entendida como a do “poder”. Uma tentação permanente na história da Igreja e dos cristãos. Quantas vezes a Igreja confiava mais no poder secular do que na fragilidade da cruz, para “evangelizar”. Quanta aliança entre a cruz e a espada - a América Latina que diga! Ainda hoje todos nós enfrentamos esta tentação - não de ter poder para servir, mas de confiar no poder aparente deste mundo, mais do que na fraqueza aparente de Deus. Jesus, que veio para servir e não para ser servido, que veio como o Servo de Javé e não como dominador, teve que clarificar a sua vocação e despachar o diabo com a frase: “Não tentarás o Senhor seu Deus” (v. 12).
 Realmente, podemos nos encontrar nas tentações de Jesus! São as tentações do mundo moderno - o ter, o poder e o prazer! Coisas boas em si, quando bem utilizadas conforme a vontade de Deus, mas altamente destrutivas quando tomam o lugar de Deus em nossas vidas! Jesus teve que enfrentar o que nós enfrentamos - o “diabo” que está dentro de nós, o tentador que procura nos desviar da nossa vocação de discípulos. O relato de Lucas nos coloca diante da orientação básica para quem quer vencer: “Você adorará o Senhor seu Deus, e somente a ele servirá” (Lc 4, 8).